Se a minha memória não falha, foi num “Boeing” da Força Aérea, que em 19 de Novembro de 1971, já lá vão 39 anos, aterrei no aeroporto do Bissalanca em Bissau. Nunca antes viajara de avião, tinha então 19 anos, que completara um mês antes. Era ainda uma criança, grumete radiotelegrafista, e ia integrar a tripulação do navio patrulha “NRP ARGOS”.
Lembro-me do “bafo” escaldante que senti ao caminhar no aeroporto de Bissalanca, aquando da chegada, que contrastava com a temperatura fresca que sentira horas antes quando partira de Lisboa.
Lembro-me que o “Argos”, estava atracado no cais do porto de Bissau, e terminara uma longa reparação de avaria na casa das máquinas que o impedia de navegar há vários meses. Tenho a ideia de que a maioria da sua tripulação tinha chegado recentemente e outros estariam mesmo a terminar a comissão. O que recordo é que o navio ficou ali amarrado ainda algum tempo, talvez mais um mês, a ultimar a reparação e preparativos para começar a navegar pela Guiné, enquanto fui tendo os primeiros contactos, com a cidade, o seu povo e principalmente com os muitos militares que ali estavam de passagem ou em permanência. Recordo um bonito jardim que havia na cidade, a avenida principal que tinha ao fundo o palácio do governador, as marisqueiras, o movimento das ruas do comércio, o cais de Pidjiquiti com muito peixe e traineiras, o mercado, os bairros periféricos.
Creio que não foi sonho aquela imagem que me ficou gravada na memória, de ver muitos grilos nas ruas e paredes, e ver funcionários, salvo erro camarários, com jactos de água a limpar os grilos das ruas. Meio confuso, já não sei se foi sonho, tenho na memória a ideia de que havia uma cervejaria onde esses grilos eram um petisco que acompanhava a cerveja, como noutras cervejarias serviam camarão ou amendoim. Lembro-me das noites quentes, húmidas, das fortes trovoadas, das momentâneas chuvadas torrenciais e o calor húmido constante que fazia com que o corpo estivesse quase sempre transpirado e pegajoso.
Concluída a reparação, o navio patrulha sai do porto de Bissau para os primeiros testes das máquinas em alto mar.
Variadas vezes me tem aflorado à memória o inolvidável acontecimento que ocorreu com a primeira saída do navio do porto de Bissau. Passada a foz do rio Geba, apareceu um grupo de quatro ou cinco golfinhos que durante largos minutos acompanharam em paralelo o navio, de um lado e de outro, emergindo em saltos e submergindo no mar. Foi uma visão extraordinária, aquela de os golfinhos saltitarem durante largos minutos juntos e em paralelo acompanhando o navio na sua primeira saído do porto, e por incrível que pareça, nunca mais voltou a ocorrer, não obstante as dezenas de vezes que navegou entrando e saindo do porto de Bissau.
Ultrapassado o teste das máquinas, começaram as viagens de patrulhamento dos rios e zona marítima da Guiné, e é no pequeno cubículo, que é a cabine do radiotelegrafista, que passo a maior parte das 24 horas de cada dia, codificando/descodificando transmitindo/recebendo mensagens, escrevendo à família, ouvindo rádio, e brincando com as comunicações experimentando contactar com outros territórios ultramarinos e com camaradas ali colocados, o que consegui em diversas ocasiões, e muitas vezes procurando ajudar outros colegas de navios pequenos e com fracas comunicações, servindo de ponte entre eles e Bissau.
Recordo as muitas viagens de patrulhamento pelo Rio Cacheu, por vezes noite cerrada, e o navio dissimilado com as luzes apagadas, não se podendo fumar ou ter luzes no exterior, motores desligados, horas sem fim, esperando nada…. e depois continuar, devagar, o mais silencioso possível, mais á frente parar, fundear, e ali ficar camuflado, silencioso, a margem e o arvoredo ali tão perto, e pensava se um “turra” vem ali à margem e nos vê e atira uma granada para dentro do navio vamos todos “pr’o galheiro”…esperar… uma noite, outro dia outra noite… quantas noites, no escuro, silêncio, os fuzileiros que em botes de borracha chegavam, vinham ao nosso encontro recolhendo-se no navio terminada a sua missão, outras vezes levávamo-los até ás proximidades no início da sua missão, onde partiam nos botes de borracha e por lá ficavam… seguir rio acima… atracar no cais de Ganturé, confraternizar com os fuzileiros ali aquartelados, os comandantes em conferência para programar alguma missão, fundear em Binta ou atracar no pequeno cais de barrotes de madeira, e algumas vezes, julgo que só quando a maré permitia, chegar até Farim, passear na vila e voltar a patrulhar o Rio Cacheu, noite e dia, e incidir com mais frequência em determinados pontos que seriam locais de passagem de canoas com guerrilheiros e armamento, disparando as peças de artilharia e as mg’s sobre as margens, na tentativa de fustigar ou afastar o inimigo, e continuar sempre a navegar, por vezes atracar na vila de Cacheu e voltar a Bissau.
Alguns dias para reabastecer, receber notícias da metrópole, ler cartas recebidas da família e amigos, escrever os famosos aerogramas, dar umas voltas pela cidade, beber umas cervejas e comer uma ou duas travessas de ostras. Que maravilha de ostras que nunca mais voltarei a comer igual.
Decorridos alguns dias iniciava-se nova missão de patrulhamento, e durante duas ou três semanas, não sei ao certo, não voltaríamos a Bissau. Enfiado no meu cubículo de transmissões, codificava/descodificava e manipulava a chave de morse, enquanto o navio rumava agora em direcção a Bolama – pequena e bonita cidade com a piscina junto do cais – e toda aquela região marítima. Atracar no cais ou fundear ao largo e esperar. Depois seguir, algo se passava em Cufar, - Catió, ou Cacine, talvez em Fulacunda ou em Buba, nomes que tantas vezes codifiquei/descodifiquei. Por uma vez seguimos por aquele braço de mar acima, até caboxanque e fundeámos junto àqueles troncos de madeira a servir de cais, e por ali estivemos, pouco tempo, o suficiente para ir de bote a terra, ao aquartelamento do exército ali próximo, e ficar meio incrédulo e amedrontado com os abrigos/alojamento em buracos debaixo de terra. Ouvia-se o ribombar dos obuses, não muito longe. Não houve tempo para mais, a maré vazava.
Voltar a patrulhar o Rio Cacheu, noite e dia, regressar a Bissau, reabastecer, prosseguir até à zona de Bolama, penetrar pelo Rio Cumbijã ou Cacine, foi a constante ao longo da comissão, e embora nunca tivéssemos sofrido qualquer ataque, tenho uma vaga ideia de termos ficado surpreendidos com duas morteiradas, que caíram nas proximidades, ao início da noite, quando o navio estava atracado em Bolama.
Recordo o estoicismo e o heroísmo dos camaradas tripulantes das LDM´s e LDP’s, que tantas vezes acompanhámos, que naquelas cascas de nozes seguiam rios adentro penetrando pelos canais mais estreitos para chegar abastecimento e outros produtos, aos aquartelamentos dos fuzileiros ou do exército, ou transportar militares e os desembarcar o mais próximo possível do local onde se desenvolveria a operação. Estas lanchas foram atacadas variadas vezes e alguns dos seus tripulantes, feridos de morte, ali padeceram.
Recordo que por uma vez fizemos um cruzeiro pelas ilhas dos Bijagós. Fundeámos ao largo de uma das ilhas, e em bote de borracha fui a terra com um grupo de caçadores, que trouxeram uma carrada de pombos para fazer um petisco. Lembro-me duma grande praia de areia muito branca e macia. No interior da ilha havia uma vegetação exuberante, árvores muito altas, e uma população pacata com quem conversámos. Fundeámos também junto ao cais de Bubaque, que diziam ser uma ilha turística onde havia um hotel, e na memória ficou uma tarde de mergulhos naquela água morna, esverdeada e muito transparente.
Regressado a Bissau em certa ocasião encontrei-me com meu irmão, furriel do exército, que também cumpria o serviço militar no interior da Guiné, que me escrevera a avisar que viria passar uns dias de férias a Bissau. Para celebrar o encontro foi uma barrigada de ostras e cervejas bem bebidas.
Recordo os camaradas da tripulação, que tanto contribuíram para uma boa comissão, com quem partilhei bons momentos e com quem, no refeitório, joguei muitas suecadas e bebi muitas cervejas, e que nunca mais encontrei, de alguns já nem do nome me lembro, mas outros revejo ocasionalmente nas fotografias. O meu companheiro radiotelegrafista Cruz, que tanto gostava dumas cervejinhas, o cabo Manuel, electricista, bom camarada e caçador, que bem sabia contar umas histórias, o mar. E Morais com a sua barbicha e sempre disponível para ajudar, o grumete Vitor, que era dos lados de Gaia, bom companheiro e amigo, o grumete Carlos Cabral com o seu macaco, O Pinheiro, marinheiro F, bom companheiro, O sargento Mendonça, o Pinto e o Sena bons companheiros e amigos, o cozinheiro Oliveira que tudo fazia para nos manter bem alimentados e que muitas vezes nos preparou bons petiscos, o electricista Cruz, o Canavezes e outros de quem não lembro do nome nem sei dar referências mas cujos rostos afloram à mente.
Durante a minha passagem pela Argos, foram comandantes os então primeiros-tenentes Artur Junqueiro Sarmento e José Brás Maldonado Cortes Simões, e, imediatos, segundo tenentes RN José Luis da Câmara Alves e José Alfredo Queiroga de Abreu Alpoim
A todos obrigado.
Álvaro da Graça Vidal, mar C 1632/70,
NRP Argos, Guiné, de 11/1971 a 9/1973
Algumas fotos daquele tempo.
NRP Argos atracado em Binta
Neste dia houve “lerpa a bordo”- a contar da esquerda, Cabral, Pedro, Morais, Sena, Manel e …..?
E aqui havia sueca – a contar da esquerda, Pedro, Saraiva, Vidal “Canavezes e Victor.
Houve petisco – a começar na esquerda, Cruz, Vidal, Victor, e … ? – em frente -….?, Sena, Canavezes, Oliveira e Morais
Houve petisco e já estava tudo com os copos – na esquerda, Saraiva, Cabral,…..?, Victor, Vidal, Cruz e em frente- …… ?, Sena Canavezes, Morais, Manel e ………… ?
Em Binta - Vidal (eu) e o o mar. E Cruz
Num pequeno forte que existia próximo do cais de Vila Cacheu
A contar da esquerda, Saraiva, Vidal, Pinheiro, Victor e Sarg.Mendonça
Num pequeno cais em caboxanque.
Na frente Sena e Vidal. Atrás ………………?
Vidal (eu), na altura sem barba, a passear na avenida principal em Bissau.
Gostei de ler este apontamento recordativo da passagem do amigo pela Guiné. Também lá estive entre 1969-1971 prestei serviço no Hospital Militar e recordo com saudades os 15 dias de férias que passei em Bubaque - Ilha dos Bijagós.
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