Ao chegar à Guiné, e após uns dias na INAB, fui destacado para a Hidra, que na altura se encontrava Inop. Achei a fartura muita e não me enganei: aquela vida de estar atracado à Ponte Cais a ver as Lanchas e os Patrulhas chegarem e partirem para missões, estar atento ao desembarque dos periquitos que chegavam no Uíge e no Niassa para ver se chegava algum filho da terra, sair à noite para dar umas voltas por Bissau com paragem obrigatória no Pelicano, umas idas ao cinema da UDIB, com umas travessas de ostras pelo meio, de certeza que não era para mim. E não me enganei. Passados 3 ou 4 dias já estava com guia de marcha para me apresentar na Argos. A partir daí ostras, wisky com cola e cinema só de 15 em 15 dias.
Quando me apresentei a bordo e comecei a conhecer a malta da guarnição, dei de caras com a Dicka, uma cadela grande, cor de mel, simpática, obediente e inteligente e na altura com uma barriga medonha. Estava grávida, e segundo um camarada, dos mais antigos a bordo me informou, a cadela tinha vindo de Moçambique com o navio, sendo o pai dos próximos membros ( de 4 patas) da guarnição, o cão da Sagitário. A partir desse momento, e durante os 22 meses da comissão, a minha relação com a Dicka foi excepcional, ao ponto de em algumas situações pontuais criar inimizade com quem fosse menos conveniente no trato com ela.
A primeira saída da Argos comigo a bordo foi para Bolama, de madrugada. Estava de quarto (das 4 às 8), ainda pouco habituado ao viver a bordo mas numa das idas à coberta, para matar a sede, dou com a Dicka em trabalho de parto no corredor que dava acesso à câmara dos oficiais. Passado um pouco já estavam mais um ou dois marujos a colaborar como parteiros e não tardou nada já havia um” rebanho” de cachorros nascidos. Um dos cachorros, o mais parecido com a mãe, era o maior de todos, da mesma cor mas pintado de branco na zona do pescoço e nas patas. Não imaginei eu que seria esse o eleito para passar a viver a bordo. Passado algum tempo e com os bebés já “grandotes”, um dos divertimentos da malta era juntar o Zorba (o macaco) e apreciar as brincadeiras do macaco com os cachorros, com a Dicka sempre alerta e pronta a dar uma tareia no macaco caso fosse necessário. Como uma das fotos documenta, até um porco, que se encontrava na situação de adido, até fazer parte da ementa, entrou nas brincadeiras.
Com os cachorros restantes já prontos a receber guia de marcha, não me lembro de quem partiu a ideia de que um deles ficasse a bordo para fazer parte da guarnição, recaindo a escolha no das malhas brancas. O Comandante Sarmento é que não estava muito sensibilizado mas com alguma insistência condescendeu, sendo o cachorro aumentado ao efectivo e alguém o baptizou como Lorde, nome que lhe assentava lindamente dada a sua pachorra e lentidão e dotes de” bom garfo”. Os outros foram destacados ou passaram à vida civil, tendo-se encarregado dessa tarefa o Sr. Manuel (o impedido dos oficiais) e o Joãozinho (o dos sargentos), que carregaram com eles para a tabanca.
Com o passar do tempo, o Lorde foi crescendo e, passados uns meses, estava quase do tamanho da mãe. Desde sempre os cães foram para mim uma atracção e motivo de cuidados, não recebendo por parte deles, por vezes, a justa paga por aquilo que lhes faço, antes pelo contrário. Não sendo a Dicka e o Lorde excepção, dar-lhes comida, banho e carinho fez sempre parte das minhas obrigações durante a comissão. Os passeios a terra com visita às tabancas também faziam parte do serviço. O pior era que tanto um como outro eram muito grandes e fortes, em comparação com cães nativos, pequeninos e enfezados. Nessas visitas às tabancas, os dois eram sempre motivo de admiração por parte dos naturais da terra, acontecendo várias vezes ver o Lorde entrar pela porta da tabanca e os moradores saírem em voo picado pela abertura que fazia de janela, assustados com as dimensões dos dois.
O grande problema do Lorde era que não tinha aptidão nenhuma para artilheiro. Eventualmente, o defeito não foi detectado na inspecção para o serviço militar, pois, assim que as Bofors faziam fogo, o bom do Lorde voava do corredor para o refeitório, sem tocar nos degraus da escada, para se ir esconder debaixo da mesa ou mesmo na coberta, e ninguém o tirava de lá enquanto não parasse o fogo das peças. Foi com grande pena que, em Novembro de 73, com o fim da comissão, tive que deixar estes dois amigos. Mais tarde fiquei sabendo que ao Lorde não lhe aconteceu nada de bom mas que a Dicka, em 74, com a ida dos navios para Angola, um dos membros da tripulação, na altura, fez questão de a trazer para a Metrópole, terminando os seus dias de vida na zona do Cartaxo.
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Os meus grandes amigos: a moçambicana DICKA e o guineense LORDE |
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Eu e a Dicka |
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Zorba, o macaco, Lorde e os irmãos |
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Lorde ao ataque e o Zorba a ver |
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O Duarte também foi protector da Dicka! |