Durante estes quase quarenta anos após a minha ida para a Guiné, fevereiro de 1972, e o meu regresso, novembro de 1973, nunca tive coragem de pedir que a minha mãe me entregasse um pequeno baú onde ela, na altura, ia guardando, após ler, toda as cartas, postais, aerogramas e telegramas que lhe enviava. Na sua grande maioria, essa correspondência era endereçada aos meus pais, irmão, tia e avó e foi enviada durante toda a comissão num total que ultrapassa as duas centenas de exemplares.
Nesta última semana, e para que a minha mãe preparasse antecipadamente a entrega, como ela gosta, telefonei e perguntei-lhe: Mãe, ainda tens o baú com as cartas da Guiné? Do outro lado só podia ouvir a resposta que eu esperava: Passa cá por casa à noite que eu ponho isso a jeito!
Ao fim da tarde e sem vir directo para casa, como é hábito, lá fui aos Três Bicos, onde reside a minha mãe, hoje com 84 anos mas com uma memória e uma lúcidez capaz de fazer inveja a uma miúda de 18. Bati à porta e sem dizer quem era, coisa que ela não gosta que se faça, a porta abriu-se e lá estava o” baúzinho”, como ela lhe chama, em cima da mesa, dentro de um saco de plástico e pronto para eu o levar.
Entrei, e sem eu dizer nada, veio logo o comentário imediato: Conforme me pediste está aí o “baúzinho” com as todas cartas que tu mandaste da Guiné, está um pouco velho assim como eu, e até já está um bocado ferrugento assim como as minhas pernas, mas não faltam cartas nenhumas!
Depois de me procurar, “o que é que vais fazer com isso” ?, respondi-lhe, para satisfazer a sua curiosidade, que era para ler e me recordar daqueles tempos e dos meus 20 anos. Peguei no saco e despedi-me, com um até amanhã e voltei para casa com o “baúzinho” ao meu lado no carro. Ao entrar em casa não resisti e, após dizer à minha mulher “Já viste o que tenho aqui?”, abri-o, peguei numa das duas primeiras cartas que retirei e comecei a ler. Como não estão por ordem de chegada, a primeira, era de Maio de 72 e a seguinte de data próxima. Optei por ler a primeira. O texto, à boa maneira portuguesa, começa por: “ espero que ao receberes esta minha carta se encontrem todos de saúde que eu felizmente estou bem....”. Depois de algumas palavras, acerca do atraso ou da pontualidade da anterior correspondência recebida, e de umas curtas palavras acerca do tempo na Guiné, comentando com um; “dias enevoados que até parece que está a chover e que faz um mal dos diabos”, continua com as perguntas, sacramentais, questionando a minha mãe acerca de como estava cada um dos meus familiares, prosseguindo com algumas informações acerca do meu estado de saúde (tinha acabado de passar por um principio de paludismo) e também informando acerca da nossa situação, onde estamos e para onde possívelmente vamos, terminando com o habitual, “ por hoje é tudo, saudades para todos” etc, etc, etc.
Não foi nada fácil, passados todos estes anos, voltar a ler o que escrevi naquela altura, a dar noticias aos meus familiares. Com as condições que eram comuns a todos nós que andávamos embarcados, por vezes, entregando a nossa correspondência aqui e ali em mãos das quais não tinhamos a certeza de que dariam bom caminho ao que lhes era confiado.
Após as primeiras linhas, e lendo em voz alta para quem estava junto a mim ouvisse, ao chegar onde nomeio aqueles que hoje já cá não estão, já o tom de voz não era o mesmo e a comoção começou a dar conta de mim. Mais adiante, e lidas mais quatro ou cinco linhas com os pormenores a me virem à memória, então aí já com a comoção a passar para as lágrimas a me pingarem para dentro dos óculos, julgo ser tempo de parar com a leitura e deixar tudo para mais tarde.
Além das cartas, com os célebres envelopes com a legenda “ Por Avião”,”Par Avion”,”By Air Mail”, com as cores vermelho e verde a toda a volta, também o “baúzinho” contém os conhecidos “Aerogramas”, mas em número muito reduzido, pois era um tipo de correio que não me seduzia muito, sobretudo, por ouvir alguns camaradas dizer que “eles” os abriam para saberem do seu conteúdo.
Mais tarde, passados alguns dias, e já mais calmo, foi tempo de ler mais algumas cartas e os telegramas que os meus amigos Cruz e Vidal, os nossos telegrafistas, enviavam aos nossos familiares e amigos. Lembro-me tão bem como se fosse hoje, de ir à cabine de rádio consultar o manual que eles tinham, no qual cada algarismo correspondia a uma mensagem de texto, e pedir-lhes para que me enviassem o número correspondente ao meu desejo. Graças a eles, os nossos familiares poderam receber os votos de boas festas, de feliz aniversário, e todo o tipo de mensagens que nós, de tão longe lhes enviávamos.
Que bom que era quando chegava o correio a bordo. Quem não se lembra de ir a Bigene à espera do Ralye, o avião que tranportava o correio, na ânsia de ler as últimas noticias dos familiares e da terra, das LDM´S que, ocasionalmente, também traziam as boas e, por vezes, as más noticias dos nossos familiares. A distribuição do correio, foi sempre para mim um momento de alegria e algumas vezes de desilusão por não ver chegar aquilo que esperava. Receber noticias dos pais, das esposas e das namoradas, quem as tinha, foi um dos momentos que mais me marcou durante toda a comissão.
Com muita da correspondência, ainda para ler, e que o “baúzinho” ainda encerra , quero inserir aqui no blog alguns daqueles exemplares que julgo serem os mais importantes e que decerto irá fazer reviver em cada um de nós aqueles momentos, os maus e os bons, porque nós todos passamos.
Bilhete-postal enviado em 16-02-1972 aquando da escala na Ilha do Sal a caminho da Guiné |
Um dos telegramas que os nossos camaradas Cruz e Vidal nos telegrafavam |
O mesmo que o anterior mas mais decorado |
O nº 2 - desejando um bom Natal à família |
O 1º aerograma enviado da Guiné, ainda embarcado na Hidra - Fev/72 |
O 2º aerograma enviado já a bordo da Argos |
Carta com o logotipo do nosso navio |
A antepenúltima antes de acabar a comissão - Nov/73 |
A penúltima enviada já depois de ter destacado da Argos - Nov/73 |
A última, enviada da Guiné, a avisar do dia e possível hora de chegada a Lisboa - Nov/73 |
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