sábado, 19 de março de 2011

OS CRUZEIROS NO CACHEU

O serviço de patrulha no Rio Cacheu, efectuado pelas LFG`S, tinha como fim apoiar as nossas tropas, nomeadamente, os fuzileiros nas operações de desembarque e reembarque, no movimento de tropas em operações, na proteção às LDM`S e comboios de batelões, e fundamentalmente, evitar a cambança do rio pelos guerrilheiros do PAIGC.A fiscalização era efectuada com pequenas viagens diurnas e nocturnas, em ocultação de luzes, efectuadas a montante e a jusante de Ganturé, e ocasionalmente, umas viagens a Binta e a Farim, sendo que, esta última localidade, era o limite máximo do que era possível navegar no Cacheu, em virtude do calado das LFG`S.
A Argos em Ganturé
De 15 em 15 dias, invariavelmente, lá íamos a caminho do Cacheu quando não havia necessidade dos nossos préstimos no Sul, ou noutro local que necessitasse do nosso apoio. A viagem começava com a manobra de desatracar da Ponte Cais de Bissau com rumo ao Farol do Caió, e daqui para a foz do Cacheu, um estuário largo, enevoado e traiçoeiro, em virtude dos baixios existentes. A qualidade das nossas cartas e o saber dos nossos comandantes obstavam a qualquer percalço. Após a saída de Bissau, e já com algum tempo de navegação, que contraste! As águas barrentas e turbolentas do Geba e as do oceano limpídas e esverdeadas. Quando a viagem era efectuada durante o dia era sempre um espectáculo. Numa dessas viagens, e não estando de quarto à máquina, ao adormecer no meu beliche, o primeiro no lado de EB a vante, junto da antepara da casa de banho, sonhei que iamos em viagem, costa de África acima e estávamos a chegar ao Algarve!...
De um momento para outro, acordo sobressaltado, com alguém com o braço enfiado pelo cortinado a me sacudir e ao mesmo tempo uma voz “ Vamos a acordar que está na hora de render”, lá se foi o sonho, “pela maré abaixo”. Não queria mais nada, de viagem para o Algarve!... Estava a bordo da Argos e ainda faltava muitos meses para acabar a comissão. O Cacheu estava ali umas milhas mais adiante, era só tempo de alcançar a sua foz e virar a EB.
Rendição no Cacheu
No primeiro dos muitos cruzeiros em que participei, como membro da tripulação do NRP Argos, a chegada pela manhã, a Vila Cacheu, foi para mim, motivo de surpresa com um misto de espanto. Ao fundearmos, chegaram botes do Destacamento, alguns que atracam e outros que, com as manobras que efectuavam, faziam lembrar o verão na Praia da Rocha e os barcos a puxar ski. Alguns dos Zebros vinham com fuzos em calção de banho e outros, na água, a curtir a rapidez dos botes com manobras a roçar a proa do navio. Mais tarde, chegam canoas de nativos que ficando a pairar a alguma distância, levanta-se numa delas um dos dois tripulantes que entra em tentativa de diálogo comigo. O homem bem falou, só que eu não percebi “corno”! As únicas palavras que consegui entender foram “ senhor, água de Lisboa”, fiquei na mesma! Um camarada, menos periquito do que eu é que fez a tradução, “ o homem quer vinho, Pá”, diz-lhe “cá tem” que ele vai-se embora, e assim foi. Os coitados lá foram remando para terra sem oportunidade de “ matar o bicho”.
A Vila Cacheu, pequena povoação ribeirinha, simpática, com um grande edificio branco, tipo colonial, onde estava instalado o comando do Destacamento, um jardim com palmeiras e um monumento ao Infante, as instalações dos fuzileiros e outras casas de construção razoável, a tabanca ao fundo e, sobressaindo na borda de água o Forte do Cacheu, pequeno em dimensões a fazer lembrar o da Porta da Bandeira em Lagos, mas mais pobrezinho. Fui a terra ver o ambiente. O Sarg. Mendonça, o Saraiva, o Victor, e o Pinheiro foram para os lados do forte onde tiraram fotos para a posterioridade. Por mim preferi dar uma volta pela borda de água e meter conversa com os fuzos para indagar como era aquilo por ali. Um deles abriu o livro e fiquei a saber que, de S.Vicente para cima, começava a “festa”, aquilo por ali ainda “escapava” e que, a não ser uma operação ou outra a malta, ia vivendo. Mas rio acima, e à medida que ele ficasse mais estreito e com clareiras num bordo e noutro a coisa “piava” mais fino e que de vez em quando “tocava a sobretudos”!
A Bofors da proa
Já a manhã ia no fim, ordem para arrancar os Mayback, levantamos ferro, máquinas a vante, proa ao meio do rio e lá fomos nós rumo ao desconhecido, pelo menos para mim. A navegação, dava para entender, naquela zona em que o rio é mais profundo, não seria muito dificil pois dando o devido resguardo é efectuada no meio do curso de água. A não ser uma LDM, ronceira, que também seguia rio acima não vi mais nada que flutuasse com gente a bordo. À medida que iamos navegando o rio ia ficando mais estreito e a água menos clara, do que aquela em frente a Vila Cacheu. Após algum tempo de navegação, deu para distinguir numa margem e no lado oposto um lugar de passagem, talvez S.Vicente, e a partir daí já dava para entender o que era o tão falado e afamado tarrafe. À medida que navegávamos para montante, o rio ia estreitando cada vez mais, a paisagem alterava entre clareiras, savana, mata cerrada e nas duas margens o sempre omnipresente tarrafo. Chegada a hora da mudança de quarto à máquina, lá vou eu ver como as coisas correm, ao descer um calor sufocante no interior, agravado com o ruido das máquinas principais e dos turbos, com as uniões de dilatação dos escapes ao rubro, e ainda o ruido do MAN de serviço, não se podia pedir mais, era uma autêntica sauna. Além de tudo isto estávamos sempre na expectativa de que não rebentasse nenhum tubo ou encanamento, o que regra geral acontecia 2 ou 3 vezes por quarto, na maioria das vezes nos tubos dos condicionadores de ar. A partir de certa altura, e quando já iamos com algumas horas de navegação, noto que as peças já estão desencapadas e municiadas com o artilheiro e o municiador “montados” nelas, a partir daqui deduzo que estamos a chegar à zona dos problemas e das terríveis clareiras, talvez a uma das mais famosas, a de Barro. Como, apesar de tudo o que viesse acontecer, não dava muito jeito estar lá baixo na máquina, por isso o meu “poiso” era encostado à balaustrada em frente à porta de acesso ou então no corredor de passagem para o lado de BB. Lá baixo só obrigado, e que me lembre, só no “período aureo” maio/junho/julho de 73, em que por algumas vezes andámos a navegar em postos de combate, com tudo fechado, e que estando de quarto, é que tive que permanecer lá enclausurado.
Num daqueles momentos em que ia absorto em pensamentos ou a olhar para a margem, um estampido seco! Os ouvidos zuniram e vibraram, a cabeça ficou a doer como se tivesse levado uma martelada, deu para ficar um bocado atarantado, mas passado o efeito surpresa entendi que tinha sido a peça da proa a” bater” a clareira logo seguida, de imediato, pela da popa, essa a fazer mais estragos nos meus ouvidos dado que no momento do disparo estava mais virada para a proa.
Desde este momento até à atracação em Ganturé tudo correu normalmente com mais uma ou outra área batida pelo nosso fogo sem qualquer resposta de quem, porventura, lá estivesse à nossa espera. “Eles” sabiam com quem se metiam e esperavam pela melhor oportunidade. Atracados à estacada de Ganturé, foi tempo de continuar o quarto e habituar-me à paisagem que, a partir desse dia, seria um constante durante toda a comissão. Outras peripécias se seguiriam.

continua

A célebre clareira de Barro

  
Matança de porco em Ganturé        










4 comentários:

  1. Boa tarde !
    Camaradas da NRP ARGOS dos anos 1972/73 eu sou o Duarte Magalhães o 119/70, e como só agora descobri este blog venho por este meio informar todos os camaradas dessa época que eu resido em Viseu e trabalho como motorista de pesados para uma empresa de Leiria e faço o serviço internacional, gostava que a gente se encontrasse numa ocasiao para a gente comversar aqui deixo o meu conatacto.
    Telm; 918424144 Email.: jdcmagalhaes@hotmail.com

    Um abraço
    JDC. Magalhães

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  2. Grande Magalhães, gastei umas caixas de fósforos à tua procura e afinal foi o Vidal que te encontrou! Já viste a foto que estou contigo e chalado do Cabral na macacada, em Farim?
    Tens que dar um jeito de arranjar aí uma avaria no camião, a malta vai-se encontrar no final de Maio.
    Um abraço para ti, artilheiro do caraças!...
    Bernardino Sena, Mar. CM 1/70

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  3. Caro Sena:
    Ao ler as tuas descrições dos "cruzeiros" nos rios da Guiné,recuo no tempo e vejo uma quantidade de jovens marujos,na "ARGOS",constituindo uma verdadeira equipe e que fizeram do navio a melhor unidade naval da Guiné.Para mim foi um comando fácil,porque ,cada un na sua especialidade,sabia o que fazer,bastando um simples olhar para que o que devia ser feito fosse executado.Passámos por momentos dificieis,mas valeu a pena porque cimentou a amizade que ficou bem expressa quando nos encontrámos no almoço em Cascais.Tudo isto foi possível devido à tua iniciativa.Ainda hoje ,passados tantos anos,quando falo da Guiné com pessoal amigo ou com os filhos e netos é com muito orgulho que digo que pertenci à ARGOS.Até à próxima

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    1. Caro Sr. Comandante
      Quero em primeiro lugar lhe pedir muita desculpa por só agora ter detectado o seu comentário de 28 de Dez. passado.
      Por diversas razões não tenho prestado a atenção que o blogue merece, umas por "força do hábito" de continuar a trabalhar todos os dias, outras por puro desleixo.....
      Sr. Comandante, passados tantos após a minha passagem pelo NRP Argos ainda hoje, apesar dos 60 anos cumpridos no passado dia 6, as boas e as menos boas recordações são uma constante no meu dia a dia nunca perdendo uma oportunidade de as reviver em conversa com amigos ou com antigos camaradas. Termino enviando votos de boa saúde para o Sr. e família.
      Um grande abraço do
      Bernardino Sena

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