terça-feira, 29 de março de 2011

O Correio durante a comissão

Durante estes quase quarenta anos após a minha ida para a Guiné, fevereiro de 1972, e o meu regresso, novembro de 1973, nunca tive coragem de pedir que a minha mãe me entregasse um pequeno baú onde ela, na altura, ia guardando, após ler, toda as cartas, postais, aerogramas e telegramas que lhe enviava. Na sua grande maioria, essa correspondência era endereçada aos meus pais, irmão, tia e avó e foi enviada durante toda a comissão num total que ultrapassa as duas centenas de exemplares.
Nesta última semana, e para que a minha mãe preparasse antecipadamente a entrega, como ela gosta, telefonei e perguntei-lhe: Mãe, ainda tens o baú com as cartas da Guiné? Do outro lado só podia ouvir a resposta que eu esperava: Passa cá por casa à noite que eu ponho isso a jeito!
Ao fim da tarde e sem vir directo para casa, como é hábito, lá fui aos Três Bicos, onde reside a minha mãe, hoje com 84 anos mas com uma memória e uma lúcidez capaz de fazer inveja a uma miúda de 18. Bati à porta e sem dizer quem era, coisa que ela não gosta que se faça, a porta abriu-se e lá estava o” baúzinho”, como ela lhe chama, em cima da mesa, dentro de um saco de plástico e pronto para eu o levar.
Entrei, e sem eu dizer nada, veio logo o comentário imediato: Conforme me pediste está aí o “baúzinho” com as todas cartas que tu mandaste da Guiné, está um pouco velho assim como eu, e até já está um bocado ferrugento assim como as minhas pernas, mas não faltam cartas nenhumas!
Depois de me procurar, “o que é que vais fazer com isso” ?, respondi-lhe, para satisfazer a sua curiosidade, que era para ler e me recordar daqueles tempos e dos meus 20 anos. Peguei no saco e despedi-me, com um até amanhã e voltei para casa com o “baúzinho” ao meu lado no carro. Ao entrar em casa não resisti e, após dizer à minha mulher “Já viste o que tenho aqui?”, abri-o, peguei numa das duas primeiras cartas que retirei e comecei a ler. Como não estão por ordem de chegada, a primeira, era de Maio de 72 e a seguinte de data próxima. Optei por ler a primeira. O texto, à boa maneira portuguesa, começa por: “ espero que ao receberes esta minha carta se encontrem todos de saúde que eu felizmente estou bem....”. Depois de algumas palavras, acerca do atraso ou da pontualidade da anterior correspondência recebida, e de umas curtas palavras acerca do tempo na Guiné, comentando com um; “dias enevoados que até parece que está a chover e que faz um mal dos diabos”, continua com as perguntas, sacramentais, questionando a minha mãe acerca de como estava cada um dos meus familiares, prosseguindo com algumas informações acerca do meu estado de saúde (tinha acabado de passar por um principio de paludismo) e também informando acerca da nossa situação, onde estamos e para onde possívelmente vamos, terminando com o habitual, “ por hoje é tudo, saudades para todos” etc, etc, etc.
Não foi nada fácil, passados todos estes anos, voltar a ler o que escrevi naquela altura, a dar noticias aos meus familiares. Com as condições que eram comuns a todos nós que andávamos embarcados, por vezes, entregando a nossa correspondência aqui e ali em mãos das quais não tinhamos a certeza de que dariam bom caminho ao que lhes era confiado.
Após as primeiras linhas, e lendo em voz alta para quem estava junto a mim ouvisse, ao chegar onde nomeio aqueles que hoje já cá não estão, já o tom de voz não era o mesmo e a comoção começou a dar conta de mim. Mais adiante, e lidas mais quatro ou cinco linhas com os pormenores a me virem à memória, então aí já com a comoção a passar para as lágrimas a me pingarem para dentro dos óculos, julgo ser tempo de parar com a leitura e deixar tudo para mais tarde.
Além das cartas, com os célebres envelopes com a legenda “ Por Avião”,”Par Avion”,”By Air Mail”, com as cores vermelho e verde a toda a volta, também o “baúzinho” contém os conhecidos “Aerogramas”, mas em número muito reduzido, pois era um tipo de correio que não me seduzia muito, sobretudo, por ouvir alguns camaradas dizer que “eles” os abriam para saberem do seu conteúdo.
Mais tarde, passados alguns dias, e já mais calmo, foi tempo de ler mais algumas cartas e os telegramas que os meus amigos Cruz e Vidal, os nossos telegrafistas, enviavam aos nossos familiares e amigos. Lembro-me tão bem como se fosse hoje, de ir à cabine de rádio consultar o manual que eles tinham, no qual cada algarismo correspondia a uma mensagem de texto, e pedir-lhes para que me enviassem o número correspondente ao meu desejo. Graças a eles, os nossos familiares poderam receber os votos de boas festas, de feliz aniversário, e todo o tipo de mensagens que nós, de tão longe lhes enviávamos.
Que bom que era quando chegava o correio a bordo. Quem não se lembra de ir a Bigene à espera do Ralye, o avião que tranportava o correio, na ânsia de ler as últimas noticias dos familiares e da terra, das LDM´S que, ocasionalmente, também traziam as boas e, por vezes, as más noticias dos nossos familiares. A distribuição do correio, foi sempre para mim um momento de alegria e algumas vezes de desilusão por não ver chegar aquilo que esperava. Receber noticias dos pais, das esposas e das namoradas, quem as tinha, foi um dos momentos que mais me marcou durante toda a comissão.
Com muita da correspondência, ainda para ler, e que o “baúzinho” ainda encerra , quero inserir aqui no blog alguns daqueles exemplares que julgo serem os mais importantes e que decerto irá fazer reviver em cada um de nós aqueles momentos, os maus e os bons, porque nós todos passamos.


Bilhete-postal enviado em 16-02-1972 aquando da escala na Ilha do Sal a caminho da Guiné

Um dos telegramas que os nossos camaradas Cruz e Vidal nos telegrafavam

O mesmo que o anterior mas mais decorado

O nº 2 - desejando um bom Natal à família

O 1º aerograma enviado da Guiné, ainda embarcado na Hidra - Fev/72

O 2º aerograma enviado já a bordo da Argos

Carta com o logotipo do nosso navio

A antepenúltima antes de acabar a comissão - Nov/73

A penúltima enviada já depois de ter destacado da Argos - Nov/73

A última, enviada da Guiné, a avisar do dia e possível hora de chegada a Lisboa - Nov/73


segunda-feira, 21 de março de 2011

AVISO À NAVEGAÇÃO

Atenção camaradas e visitantes do blog. 
Está em fase de preparação o 1º Encontro Nacional das Tripulações do NRP ARGOS de 72 a 74.
Em principio, realizar-se-á em finais de Maio próximo, na área de Lisboa. Aguardem noticias.

sábado, 19 de março de 2011

Fotos da Guarnição de 73/74

As Boas Festas do Duarte para a família

Havia festa!

Estes não foram a Conacry! Quem serão?

Pessoal da máquina

Duarte, o Grande "Domador de Feras"


Identifiquem-se!

OS CRUZEIROS NO CACHEU

O serviço de patrulha no Rio Cacheu, efectuado pelas LFG`S, tinha como fim apoiar as nossas tropas, nomeadamente, os fuzileiros nas operações de desembarque e reembarque, no movimento de tropas em operações, na proteção às LDM`S e comboios de batelões, e fundamentalmente, evitar a cambança do rio pelos guerrilheiros do PAIGC.A fiscalização era efectuada com pequenas viagens diurnas e nocturnas, em ocultação de luzes, efectuadas a montante e a jusante de Ganturé, e ocasionalmente, umas viagens a Binta e a Farim, sendo que, esta última localidade, era o limite máximo do que era possível navegar no Cacheu, em virtude do calado das LFG`S.
A Argos em Ganturé
De 15 em 15 dias, invariavelmente, lá íamos a caminho do Cacheu quando não havia necessidade dos nossos préstimos no Sul, ou noutro local que necessitasse do nosso apoio. A viagem começava com a manobra de desatracar da Ponte Cais de Bissau com rumo ao Farol do Caió, e daqui para a foz do Cacheu, um estuário largo, enevoado e traiçoeiro, em virtude dos baixios existentes. A qualidade das nossas cartas e o saber dos nossos comandantes obstavam a qualquer percalço. Após a saída de Bissau, e já com algum tempo de navegação, que contraste! As águas barrentas e turbolentas do Geba e as do oceano limpídas e esverdeadas. Quando a viagem era efectuada durante o dia era sempre um espectáculo. Numa dessas viagens, e não estando de quarto à máquina, ao adormecer no meu beliche, o primeiro no lado de EB a vante, junto da antepara da casa de banho, sonhei que iamos em viagem, costa de África acima e estávamos a chegar ao Algarve!...
De um momento para outro, acordo sobressaltado, com alguém com o braço enfiado pelo cortinado a me sacudir e ao mesmo tempo uma voz “ Vamos a acordar que está na hora de render”, lá se foi o sonho, “pela maré abaixo”. Não queria mais nada, de viagem para o Algarve!... Estava a bordo da Argos e ainda faltava muitos meses para acabar a comissão. O Cacheu estava ali umas milhas mais adiante, era só tempo de alcançar a sua foz e virar a EB.
Rendição no Cacheu
No primeiro dos muitos cruzeiros em que participei, como membro da tripulação do NRP Argos, a chegada pela manhã, a Vila Cacheu, foi para mim, motivo de surpresa com um misto de espanto. Ao fundearmos, chegaram botes do Destacamento, alguns que atracam e outros que, com as manobras que efectuavam, faziam lembrar o verão na Praia da Rocha e os barcos a puxar ski. Alguns dos Zebros vinham com fuzos em calção de banho e outros, na água, a curtir a rapidez dos botes com manobras a roçar a proa do navio. Mais tarde, chegam canoas de nativos que ficando a pairar a alguma distância, levanta-se numa delas um dos dois tripulantes que entra em tentativa de diálogo comigo. O homem bem falou, só que eu não percebi “corno”! As únicas palavras que consegui entender foram “ senhor, água de Lisboa”, fiquei na mesma! Um camarada, menos periquito do que eu é que fez a tradução, “ o homem quer vinho, Pá”, diz-lhe “cá tem” que ele vai-se embora, e assim foi. Os coitados lá foram remando para terra sem oportunidade de “ matar o bicho”.
A Vila Cacheu, pequena povoação ribeirinha, simpática, com um grande edificio branco, tipo colonial, onde estava instalado o comando do Destacamento, um jardim com palmeiras e um monumento ao Infante, as instalações dos fuzileiros e outras casas de construção razoável, a tabanca ao fundo e, sobressaindo na borda de água o Forte do Cacheu, pequeno em dimensões a fazer lembrar o da Porta da Bandeira em Lagos, mas mais pobrezinho. Fui a terra ver o ambiente. O Sarg. Mendonça, o Saraiva, o Victor, e o Pinheiro foram para os lados do forte onde tiraram fotos para a posterioridade. Por mim preferi dar uma volta pela borda de água e meter conversa com os fuzos para indagar como era aquilo por ali. Um deles abriu o livro e fiquei a saber que, de S.Vicente para cima, começava a “festa”, aquilo por ali ainda “escapava” e que, a não ser uma operação ou outra a malta, ia vivendo. Mas rio acima, e à medida que ele ficasse mais estreito e com clareiras num bordo e noutro a coisa “piava” mais fino e que de vez em quando “tocava a sobretudos”!
A Bofors da proa
Já a manhã ia no fim, ordem para arrancar os Mayback, levantamos ferro, máquinas a vante, proa ao meio do rio e lá fomos nós rumo ao desconhecido, pelo menos para mim. A navegação, dava para entender, naquela zona em que o rio é mais profundo, não seria muito dificil pois dando o devido resguardo é efectuada no meio do curso de água. A não ser uma LDM, ronceira, que também seguia rio acima não vi mais nada que flutuasse com gente a bordo. À medida que iamos navegando o rio ia ficando mais estreito e a água menos clara, do que aquela em frente a Vila Cacheu. Após algum tempo de navegação, deu para distinguir numa margem e no lado oposto um lugar de passagem, talvez S.Vicente, e a partir daí já dava para entender o que era o tão falado e afamado tarrafe. À medida que navegávamos para montante, o rio ia estreitando cada vez mais, a paisagem alterava entre clareiras, savana, mata cerrada e nas duas margens o sempre omnipresente tarrafo. Chegada a hora da mudança de quarto à máquina, lá vou eu ver como as coisas correm, ao descer um calor sufocante no interior, agravado com o ruido das máquinas principais e dos turbos, com as uniões de dilatação dos escapes ao rubro, e ainda o ruido do MAN de serviço, não se podia pedir mais, era uma autêntica sauna. Além de tudo isto estávamos sempre na expectativa de que não rebentasse nenhum tubo ou encanamento, o que regra geral acontecia 2 ou 3 vezes por quarto, na maioria das vezes nos tubos dos condicionadores de ar. A partir de certa altura, e quando já iamos com algumas horas de navegação, noto que as peças já estão desencapadas e municiadas com o artilheiro e o municiador “montados” nelas, a partir daqui deduzo que estamos a chegar à zona dos problemas e das terríveis clareiras, talvez a uma das mais famosas, a de Barro. Como, apesar de tudo o que viesse acontecer, não dava muito jeito estar lá baixo na máquina, por isso o meu “poiso” era encostado à balaustrada em frente à porta de acesso ou então no corredor de passagem para o lado de BB. Lá baixo só obrigado, e que me lembre, só no “período aureo” maio/junho/julho de 73, em que por algumas vezes andámos a navegar em postos de combate, com tudo fechado, e que estando de quarto, é que tive que permanecer lá enclausurado.
Num daqueles momentos em que ia absorto em pensamentos ou a olhar para a margem, um estampido seco! Os ouvidos zuniram e vibraram, a cabeça ficou a doer como se tivesse levado uma martelada, deu para ficar um bocado atarantado, mas passado o efeito surpresa entendi que tinha sido a peça da proa a” bater” a clareira logo seguida, de imediato, pela da popa, essa a fazer mais estragos nos meus ouvidos dado que no momento do disparo estava mais virada para a proa.
Desde este momento até à atracação em Ganturé tudo correu normalmente com mais uma ou outra área batida pelo nosso fogo sem qualquer resposta de quem, porventura, lá estivesse à nossa espera. “Eles” sabiam com quem se metiam e esperavam pela melhor oportunidade. Atracados à estacada de Ganturé, foi tempo de continuar o quarto e habituar-me à paisagem que, a partir desse dia, seria um constante durante toda a comissão. Outras peripécias se seguiriam.

continua

A célebre clareira de Barro

  
Matança de porco em Ganturé        










domingo, 6 de março de 2011

Fotos inéditas - A Argos de camuflado


1973/74 - A Argos pintada de verde escuro e sem conjunto de identificação
Fotos de António João Duarte, mar. CM que me foi render